28/11/2016

Continuação da caldeirada



Para trás ficou a idade dos porquês, a idade das borbulhas, a idade do sabe tudo, a idade do “não te rales”, a idade de ser sério e agora, acho que estou na idade de me emocionar.  

Por quase tudo.

Até por uma coisa simples, deliciosa e tão tradicional, como a bela caldeirada, com os seus vegetais básicos e peixes baratos. Com espinhas e peles. Com cuidado na seleção da cada ingrediente e sem modificar o que é perfeito.

No Peru têm uma coisa parecida, o sudado,  ao qual, como nalgumas das nossas caldeiradas(mas não na minha),  juntam sempre líquido – vinho, cerveja ou chicha de jora , no Brasil a moqueca não anda longe, basta juntar o óleo de palma e lá vai a caldeirada a caminho da América do Sul, e se no final entrarem o sumo de lima e os coentros já se começa a escutar o sotaque e a pedir uma caipirinha. 
Mas se for usado leite de coco e malaguetas sem medo, já vamos para outras paragens Africanas ou Indianas. No entanto a base é sempre a mesma, essa coisa milagrosa que é ter rodelas de cebola, tomate, um pouco de azeite e peixe, a suar até estarem cozidos e produzirem esse caldo fantástico, que aguenta  batatas, arroz, massa ou pão. 

Ontem foi arroz. 
Feita a caldeirada, mas sem as batatas, tirei o peixe, para o limpar de espinhas, que voltaram para o tacho, para melhorar o caldo. 
Depois de tudo bem coado, ficou um líquido cheio de sabores, que pareciam esvoaçar, entre o nariz e a boca, prometendo e dando, mais do que a lista dos ingredientes anuncia. 
Nesse líquido cozi o arroz carolino, com caldo suficiente para ficar malandrinho. No final juntei o peixe, coentros picados e o sumo de meia lima. 
Foi a panela para a mesa e depois de servir, olhei-te, esperando a aprovação...


Gostava de conseguir explicar melhor esta simplicidade,  que sinto como fundamental, mas o mais que consigo é emocionar-me e cozinhar este e outros pratos cheios de passado, presente e futuro.

22/11/2016

Tomate, cebola e peixes - uma caldeirada


Eu gosto de variedade e novidade na minha alimentação, mas neste campo, sei sempre bem quem sou e donde venho. 
Por muitas especiarias, molhos, carnes, peixes, ervas, temperos  e outros, que vá descobrindo, regresso sempre à comida tradicional da mesa familiar. Essas são as receitas que mais me dizem e que são naturais para mim. 

O tomate, a cebola, o alho e o azeite, são a base de tantos pratos que estimo e onde a simplicidade, resulta num modelo culinário Português, inequívoco e que de alguma forma nos une para além dos limites do território.


Escrevi isto há mais de um mês e desde aí tenho andado,  a remoer por dentro, sobre o que escrever a seguir. O motivo da pausa, foi a enorme vontade de ser tão simples como o prato a que me refiro, e ao mesmo tempo tentar encontrar as razões de ser esse preparado, um dos melhores que me podem servir.

Refiro-me à caldeirada, esse prato onde se cozinham ao mesmo tempos as batatas e o peixe. Onde há espinhas, peles, pevides e onde qualquer efeito estético é impossível, pois se não é bonito pela confusão, sê-lo-á pelas cores, pelos aromas, pelo sabor, pelo fumo que revela tudo isso integralmente, apenas a quem já o conhece, a quem se lembra, saliva e emociona.

A receita é talvez das mais simples que conheço. Cortam-se as batatas em rodelas, tal como as cebolas. Cortam-se os tomates maduros de igual forma, os pimentos às tiras, esmagam-se alhos, quebram-se malaguetas e folhas de louro, tempera-se o peixe com sal grosso e apronta-se o azeite.

Posto o tacho ao lume, cobre-se o fundo com azeite e começando pelas cebolas, vai-se arrumando em camadas até acabar com tudo. No topo, mais um pouco de azeite e umas ervas frescas (eu gosto de  hortelã e coentros). Tapa-se e deixa-se cozinhar durante (mais ou menos) 15 minutos.

Sem medo.
Sem água ou vinho.
Mandam abanar o tacho e eu faço-o, duas ou três vezes e mais nada, até o destapar para confirmar o ponto das batatas.


Depois, na hora de comer, não há regras para além da gulodice.
O caldo que se formou serve para tudo. Podem-se esmagar as batatas, molhar o pão, ou comer no fim como uma sopinha, cheia dos melhores sabores.  Até a escrever eu salivo.

As minhas caldeiradas deste verão/outono têm sido muitas e a parte mais importante é feita pela Bela, que me escolhe o peixe, na sua banca do Mercado de Alvalade.
Safio, tamboril, cação e raia são os meus preferidos. Nesta versão, dispenso ameijoas, camarões ou lulas, mas não dispenso uns fígados de tamboril ou de safio.
 
Foi comida de pobres, serviu para alimentar quem andava à pesca, usando as partes menos vendáveis dos peixes. Noutros locais o mesmo processo permitia consumir peixes sem valor comercial, por serem pequenos ou muito feios.  Mas hoje é manjar de festivais e prato principal em muitos restaurantes, onde gulosos sem medo das espinhas, se deliciam com tal singela preparação.

Aqui entram poucas coisas, a arte é quase nula, mas deve ser tudo fresco, muito fresco e bem escolhido. E depois é preciso ter à mesa verdadeiros apreciadores. Portugueses com certeza, pois como disse o Chef Aimé Barroyer "...é impossível um espanhol entender uma caldeirada ou um sarrabulho."