27/06/2016

A Filosofia Alemã, o Ragout Francês ou a Jardineira Universal



Já não me lembro muito bem, porque razão frequentei o curso de Filosofia, mas aconteceu e até gostei. Então, tive um professor que um dia disse, acerca de uma frase de um filósofo alemão, por ele transcrita (em alemão, claro, pois o Doutor era de grande  mérito) a giz, para o velho quadro negro:
- esta frase é tão brilhante que mesmo aqueles que não sabem alemão, a compreendem!

Talvez isso possa acontecer durante o Pentecostes, ou por via de cogumelos muito bem seleccionados, mas na verdade não percebi nada da frase e acabei por recorrer a uma tradução. Hoje, nem lembro o nome do Filósofo, do Doutor, ou da disciplina, mas recordo coisas mais importantes, como por exemplo o nome de quem me ensinou a ler - a Professora Leonilde, ali na rua das Pedras Negras, ao chegar à rua da Madalena.

Vem isto inapropriadamente a propósito da chamada “carne guisada”, também conhecida como ragoût, por outros mais afrancesados que eu. 
Carne guisada com batatas, acho que é o nome mais frequente para esse prato, mas em casa dos meus pais era apenas - Guisado, com maiúscula por ser nome próprio. Também pode ser Jardineira (não confundir com  giardinierae já são nomes a mais.

Mas, sobre o guisado eu diria (com mais hipóteses de estar certo, que esse remoto professor) que qualquer um o entende. A técnica é usada em todos os países e acho que ninguém me ensinou a fazer. Queria "apenas" fazer uma coisa igual ao que a minha Mãe fazia e por isso, além das batatas, uso a cenoura e o feijão verde como ela. Nunca falha e é reutilizável. Acabadas as batatas, coze-se macarrão e mistura-se, ou coze-se esparguete e não se mistura, ou reduz-se a creme e podemos fazer empadões, croquetes, pastéis de massa tenra, folhados de carne, etc.

Antes de descrever a técnica, queria apenas dizer que ao fim de 30 anos de culinária, provo o meu guisado e penso: não é o da Mãe! 



Carne para guisar é coisa que se pode pedir no talho. Um pedaço de carne de vaca, não demasiado magro, cortado em cubos é o que se pretende, digamos meio quilo e assim:


  • ½ kg de carne de vaca em cubos
  • 1 colher de sopa com farinha
  • 1 colher de sobremesa com paprika
  • 1 colher de sobremesa com sementes de coentros em pó
  • 1 dente de alho picado
  • 1 colher de sobremesa com sal grosso
  • 1 colher de chá com pimenta preta moída


Misturo tudo e ao fim de uns minutos salteio a carne num pouco de azeite, não colocando no tacho muita carne de cada vez para ela ter espaço para saltitar sem atropelos.
Enquanto a carne ganha cor, prossigo:

  • 1 cebola grande picada
  • 2 dentes de alho picados
  • 2 colheres de sopa de azeite 
  • 1 folha de louro


Uma vez salteada toda a carne, e com o tacho de novo vazio, junto o azeite, a cebola, o alho e o louro e deixo refogar até ganhar um pouco de cor e nessa altura juntar ½ copo de vinho branco, mexendo até este quase desaparecer.
Nessa altura eu retiro a folha de louro, e só depois junto um pacote pequeno de polpa de tomate (200g). Se houver tomate bom e maduro, uso esse, mas normalmente nas lojecas que frequento, vejo pouco disso e a polpa nacional de pacote não é nada má.
Misturo a polpa com a cebola já alourada, junto umas pedras de sal seguidas pela carne reservada e todo o seu molho. Enxaguo o recipiente da carne com um pouco de água e junto-a ao tacho, até quase cobrir a carne. Então fica a fervilhar durante 20 a 30 minutos.
Enquanto a carne cozinha, passo aos legumes que no meu caso, são:

  • 4 batatas descascadas e partidas em quartos
  • 4 cenouras descascadas e às rodelas
  • 1 chávena de feijão verde sem o fio e cortado em pedaços de 2 cm
Tudo isto é aproximado, muito variável, dependendo daquilo que há em casa.

Os legumes entram por ordem de cozimento. Primeiro as batatas, depois a cenoura e já perto do final o feijão verde.
Assim que as batatas estiverem cozidas, apago  o lume e dedico-me a coisas variadas, que em algum momento, devem incluir a ingestão do pitéu.

Como se o meu professor de filosofia tivesse dito que a tal frase ainda se entenderia melhor frente a uma grande caneca de cerveja, ou usando “lederhosen” (não o disse pois era uma pessoa séria que estava a falar a sério) , eu digo que o Guisado, compreende-se melhor acompanhado por um belo arroz carolino acabado de cozer e bem cremoso. Depois deixo à consciência de cada um esmagar ou não as batatas. Eu faço-o.

23/06/2016

Cozido é quando um homem quiser

Manda o figurino, que se interrompa a preparação dos “Cozidos” durante os meses do calor, coisa que sempre me entristeceu, principalmente porque não gosto de imposições. É triste chegar a uma casa onde se come bem, perguntar pelo cozido como quem pergunta pela família e responderem:

- nunca passa cá o verão, talvez lá para outubro!

Mas afinal, é por essas e por outras que eu aprendi a cozinhar, e se me negam o prato, vou a correr e faço-o. Além disso, um bom cozido de grão, com feijão verde, um nadinha de tomate e se possível algo de borrego, é coisa do verão, até porque rima.

Fiquei contente ao ler o recente escrito do LuísPontes sobre este tema e por isso, deixei que a gulodice dominasse.

Um cozido, mesmo de verão e mais ligeiro, precisa de planeamento. Que eu saiba, não se vende carne de porco salgada por aqui, é para isso é preciso começar dois dias antes. 
Fugindo à tentação do exagero a que se seguem demasiadas sobras, comprei apenas um naco pequeno de barriga de porco e um chispe também pequeno. Cobri-os de sal grosso e mandei-os descansar no frigorífico durante dois dias. Faz toda a diferença no sabor final das carnes e do caldo.

De enchidos usei apenas um chouriço de carne alentejano (linguiça, dizem eles) e uma farinheira também do Alentejo, que, com a excepção da morcela de arroz de Torres Novas, são os enchidos que mais gosto.

Lavei as carnes salgadas e cozi-as lentamente em água aromatizada com cebola, cenoura e alho (estes sairão depois, porque ficam quase desfeitos). A meio da cozedura entra o chouriço, já a farinheira fica para o final, pois coze rápido. 
Cozidas as carnes e coado o caldo, volta este último para o lume, com duas batatas,  três ou quatro cenouras e um tomate, por ser Verão.  Quando os legumes estão quase cozidos, junto o feijão-verde, o grão, que desta vez era de lata, as carnes desossadas e partidas, bem como umas rodelas de chouriço(sem exageros) . A farinheira espera, para não se desfazer, nem ofuscar tudo com o seu sabor forte.

Costumo usar hortelã, mas como a inspiração veio do Outras Comidas, usei a segurelha aí sugerida, que fica muito bem, e é uma erva que muito estimo por me recordar a minha avó Celeste…

Comi este cozido com muito caldo, sobre fatias finas de pão alentejano e soube-me a Verão, mesmo na falta de um pouco de borrego, que ficaria ali a matar!


Pastéis de massa tenra com cozido de grão e arroz de beldroegas


E os restos? Sim, que um homem só, não dá conta de nenhum cozido honesto. 
Pois bem, parti tudo em pequenos pedaços, fiz uma massa com 2 copos de farinha, 1 colher de sopa de banha de porco, umas areias de sal e um copo metade água, metade vinho branco (não usei o líquido todo).
Misturei farinha, banha e sal com as pontas dos dedos até estar a gordura bem incorporada e fui deitando líquido até ter uma bola homogénea. Descansou a massa no frigorífico durante 1 hora e depois foi só estender, rechear e fritar.

Para acompanhar os pastéis, voltei a improvisar e fiz um arroz de beldroegas com o resto do caldo do cozido. E vivam as beldroegas




21/06/2016

Cozido de pé quebrado

a sardinha coitadinha
não rima nem deixa rimar
não rima com o verão
menos ainda com mar

e na rua dos poetas
gulosos mas não patetas
aquilo que rima com verão
é o cozido de grão.


Vem isto a propósito deste texto que o Luís escreveu no seu Outras Comidas. Mais adiante contarei do meu cozido e do que fiz com o que sobrou.

13/06/2016

As beldroegas e o cação



Sou pouco rigoroso, pouco respeitador de regras, pouco dado a vénias e isto não apenas na culinária. 

Claro que se alguém quiser preparar umas Ostras Rockefeller deve conhecer e seguir à risca a receita, e  quem quer preparar um "leitão à Bairrada" é bom que saiba como fazê-lo pois nenhuma receita conta tudo,  mas se o objectivo for um caril de frango, umas iscas com elas ou uma sopa de cação, então a história muda de figura. Essas receitas não foram ditadas por um profeta, nem assinadas por alguém que possa vir hoje reclamar e, por muito que me custe ver os anúncios dos cubos instantâneos de caril como atalho para os impacientes, reconheço que havendo resultados melhores  que outros, não há no entanto nenhuma heresia nos processos. 

Por exemplo, aquilo que todos nós (os Portugueses) identificamos como fricassé, é uma preparação que tem pouco (ou nada) a ver com a receita original, a qual normalmente envolve cogumelos e natas. Já o ovo batido com sumo de limão, nem vê-lo, é melhor procurá-lo na Grécia e a receita nesse caso chama-se avgolemono, e é e um caldo de galinha.

Toda esta conversa para dizer que fiz uma sopa de cação diferente e muito boa. Ainda não ofendi ninguém porque ninguém provou, e nunca ofenderei ninguém porque ninguém tem esse direito. 
Podem dizer que gostam mais da versão da avó, ou do restaurante lá da terra, mas isso é tudo.
Não usei farinha, mas usei batata. E beldroegas. 

Como diz o Chefe Vicente Grenho, que eu só conheço do youtube, mas aprecio bastante: 
-Há quem acrescente a cebola nas sopas de cação, mas eu não!  
Pois olhe, desta vez , eu sim. Cebola e batata!

Receita


  • 3 finas , alvas e fresquíssimas postas de cação (da Banca da Bela, claro)
  • 1 quantidade razoável(!!!) de folhas de beldroegas – 3 mãcheias?
  • 1 cebola
  • 1 batata
  • 2 dentes de alho
  • Azeite qb e mais um bocadinho
  • Vinagre a gosto
  • Água
  • Sal
  • 1 folha de louro
  • 1 colher de chá com colorau


Comecei por temperar as postas, com sal e 1 colher de chá de colorau. Levei ao lume uma panela com água, a que juntei sal, uma cebola cortada em 4, um dente de alho e 1 folha de louro. Nesse “caldo” cozi o peixe durante 5 ou 6 minutos, findos os quais retirei as postas e juntei a batata, para por sua vez, também ser cozida. Depois, retirei a folhas de louro e com a varinha mágica desfiz muito bem tudo o resto e reservei.

Para continuar, levei outro tacho ao lume, deitei-lhe azeite e o segundo dente de alho picado para alourar. Feito isto juntei o caldo inicial e aí cozi as beldroegas durante 5 minutos. 
Passado este tempo, juntei o peixe e o vinagre. Deixei levantar fervura e depois provei - é nesta altura que alguns poderão por mais vinagre, mas nenhum conseguirá tirar o que antes pôs. Enquanto isto acontecia sem necessidade de atenção maior, aproveitei para cortar fatias finas de pão para uma tigela, regá-las com um bocadinho de azeite (tal como figura na lista dos ingredientes) e dizer-lhes que esperassem pelo caldo. Não me lembro se juntei coentros picado, mas é muito provável...

Não sendo sopas de cação, por não terem farinha e levarem as beldroegas, tão pouco serão uma sopa de beldroegas pela presença do cação e a notória ausência do queijinho. Trata-se apenas de uma coisa muito boa, que voltarei a fazer sempre que encontrar cação e beldroegas.  

06/06/2016

Viagens na minha terra - Açorda de latas

dedicado ao tio Zé Galamba que continua a bater com a tampa da panela e ao tio João Alberto autor do petisco que se relata.
 


As latas de conserva.

Os Portugueses têm um vago e inconstante orgulho nas conservas nacionais. Quando o assunto vem à baila, prontamente asseguramos que as nossas conservas são as melhores do mundo, depois esquecemo-las até ao dia em que não há nada para comer e então, abrimos uma lata de atum.

A avaliação normalmente assenta em dois factos irrefutáveis:

  •  poucos conhecem mais do que as latas de atum, sardinha e cavala
  •  ainda menos conhecem conservas doutros países para comparar

e é por isso que esta receita de hoje é realmente uma viagem na minha terra, e das grandes.

As Conservas da Companhia de Pescarias do Algarve

Realmente, as nossas conservas são boas, mas que valor lhes damos? Quando as latinhas de atum estão em promoção no super, quem é que lhes procura a origem? O que é que fazemos com elas, para além da salada de  atum com ciclistas, com grão ou com batatas cozidas.
Não sendo dos preparados mais versáteis, há vida para além do já referido e para isso segue a história da açorda(ou miga) de latas(!!!)

A açorda

Era uma vez, um tio que vivia no Brasil e um dia regressou. Nos anos que se seguiram, foi-se instalando na minha família materna, o hábito de fazer grandes almoçaradas colectivas no chamado barracão – uma espécie de grande armazém, que servia para tudo desde guardar pipas de vinho, salão de jogos para os mais novos, armazém de tudo e mais alguma coisa, garagem, e até para, sempre que necessário, ser local de casamentos e grandes festas dos muitos aniversários das famílias grandes como a minha.  

Nessas festas surgiam, vindas não sei de onde, enormes panelas onde se preparavam impressionantes quantidades de comidinhas ligeiras como é costume, para além dos infindáveis petiscos para aquecer a boca, para manter o convívio e a conversa, para adoçar a boca, para ensopar mais um copinho etc.
Um belo dia, o tio João Alberto (o tio do Brasil), anunciou que iria fazer uma açorda, para um desses eventos. A açorda que ela faria, era coisa nunca vista entre nós e por estranho que me pareça, nunca repetida por outros, que não eu. Terá sido coisa nascida na distância, para matar saudades dos sabores da cozinha materna, socorrendo-se dos productos nacionais que tinha à mão.

Não sei que idade eu teria (14? 15? 16?), mas o preparado impressionou-me de tal forma que anos depois tentei recriá-lo e acho que consegui, razão pela qual, até hoje o repito de tempos a tempos.

A ideia/receita é tão simples como isto. Faz-se uma açorda de tomate à qual se juntam as mais variadas latas de conservas – lulas, mexilhão, polvo, sardinhas etc também elas em tomate ou escabeche. 
A dita açorda (migas para quem a açorda é outra coisa) deve ainda contemplar as rodelas de chouriço, o toucinho fumado e mais alguma dessas carnes preservadas pelo sal e pelo fumo, ou mesmo uns restos de febras ou bifanas, tudo em pequenos cubos.  
Começa-se pelo refogado, com muita cebola, muito alho, louro e azeite. Depois entram o chouriço de carne às rodelas, o toucinho fumado aos cubos e por fim o tomate, também ele em grande quantidade, limpo de peles e o mais que se quiser tirar – não vem mal ao mundo se for usado tomate de lata e até rima com o resto.  A malagueta e os orégãos deverão também participar na farra.
Depois da tomatada bem apurada, juntar-se-á o pão migado (que pode incluir uma parte de broa de milho esfarelada) e após dedicação à beira da panela, a mexer e remexer com a colher de pau, entram por fim as estrelas da festa, ou seja, as conservas referidas.
Como as conservas já estão cozinhadas, o lume deve ser dispensado nessa altura, e juntando-se ovos crus e salsa picada. Mexer pela última vez para misturar tudo e servir de seguida.

Não sei porque razão esta açorda não teve mais impacto entre os meus familiares, mas nessa festa, como nas que se seguiram, não faltou o grito de guerra: Eh eh! Ganda festa! logo acompanhado pelo estrondoso bater da enorme tampa, contra a boca da panela. O barulho provocava um segundo ou dois de silêncio, para de seguida, todos voltarem a conversar e a comer durante horas, até por fim começar a cantoria.  E essa nunca foi de lata