18/02/2016

Alguma vez havia de fazer rosbife!

Conversa

Ao longo destes anos de histórias penduradas nos sabores que levo para a mesa, e que começaram a ser contadas em Julho de 2004, já houve um pouco de tudo. Mas sempre assente na constante recordação de memórias com rosto e na vontade de nunca perder esse fio condutor que faz andar para a frente revisitando tudo o que passou, sempre que isso faz sentido.

A Noélia diz  que prefiro o tradicional e é verdade.

Quer isto dizer que raramente me deixo seduzir pelas modas na mesa, gosto mais de comida fumegante que de comida bonita, gosto mais de aromas que ressuscitam dias passados, que das surpresas gustativas ou de desafios intelectuais na hora de comer.
Gosto de entender, de escutar a história escondida desses sabores que foram pobres, que foram quase perdidos, que foram até (alguns)vergonha e miséria e agora se apresentam em qualquer mesa com o orgulho de saberem o nome do pai e mãe, o caminho feito, a dificil sedução construída na distância, na saudade, na memória, na singeleza dos produtos de qualidade. na técnica apurada ao longo de gerações que não desejavam a mudança e se esta surgia era por necessidade.

"Era o cozido de grão com peras... não havia massa nem arroz, que a gente não tinha"    - video de Cozido de Grão

As memórias que trazemos devem ser convocadas sempre que forem precisas e repetidas, transformadas, recriadas com a mesma atenção, para que quem nos seguir, possa construir as suas e tenha aí uma base para o seu caminho. Ensinar e aprender, sem dar por isso.

A minha Mãe veio para Lisboa por se ter casado com um lisboeta. Chegou com os saberes culinários de uma família que levava as refeições a sério e num modelo muito tradicional, sempre sopa, salada, prato, fruta,  ficando os doces para os dias de festa.
Uma culinária de província, com muitos produtos oriundos dos terrenos dos meus Avós, comidas fortes e fartas, comidas com muita tradição e poucas novidades.

Em Lisboa já a coisa era diferente. Um dos pratos que a minha Mãe desconhecia, era presença frequente na mesa da minha Avó paterna - o rosbife.

Essa palavra, inventada à pressa para adotar integralmente um prato Inglês  (está o rosbife daqui como a marmalade deles,que mal sabem o que é um marmelo e chamam marmalade a um doce de laranjas),  era desconhecida da minha Mãe e foi a minha Avó Maria José quem lhe ensinou a técnica de cozinhar uma peça de alcatra (que o lombo é caro) por forma a deixá-la castanha por fora e em sangue por dentro.

Ao longo dos anos que se seguiram, o rosbife foi presença regular à mesa, apreciado por todos (talvez menos pela minha Mãe) que o comíamos acabado de fazer, e no dia seguinte, frio, e com um pouco de manteiga(!!!) no prato para ir untando a carne.

Passaram os tempos da adolescência e acabei ( a custo ) por sair de casa. Desde aí, raramente voltei a comer rosbife.

Em primeiro lugar porque não faria rosbife só para mim e a companhia de então não gostava muito de carne e mal passada, ainda menos.
Nos restaurantes, normalmente é servido frio e para mim deve ser quente. Frio apenas quando sobra e mesmo assim...
Ainda por cima, têm o estranho hábito de o servir com salada russa, coisa que nunca me entrou na cabeça(talvez para um pic-nic em Agosto) e por tudo isto, quase o esqueci, até que mo recordaram, com as palavras certas:
- Lembro-me tão bem do rosbife que a tua Mãe fazia!
Isto foi dito mais que uma vez, e acompanhado pelos gestos de quem está quase a saborear físicamente a memória. Perante tal interesse por parte de quem eu quero sempre impressionar, agradar  e seduzir,  tive de me convencer que rosbife, nada mais era que um naco de carne,  para cozinhar no ponto certo e resolvi pôr mãos à obra.

Rosbife

Rosbife? A palavra nem devia existir, mas lembro-me de ouvir a minha Mãe dizer no talho: Quero carne para rosbife!
Foi o que fiz e resultou. Sem qualquer hesitação, responderam: Veja lá esta alcatra! Parece-lhe bem?

Era um pedaço com 650g que tratei de limpar de peles e gorduras e, uma hora antes de tu chegares, temperei com sal grosso e fui imaginar os gestos seguintes. Cortei batatas em palitos para fritar, descasquei uns alhos e preparei a frigideira.

Quando chegaste já estava tudo preparado. As batatas tinham levado a primeira fritura e ficariam prontas em pouco tempo, por isso dediquei-me ao rosbife.

Deitei azeite na frigideira, acendi o lume, e deixei aquecer bem.  Coloquei a carne a alourar  e juntei três dentes de alho inteiros.
A carne tem de ser bem corada por todos os lados - eu deixei 3 minutos de cada lado, e fui também rodando os alhos para não queimarem. Antes de acabar a carne tirei os alhos e reservei.
Quando acendi o lume, também liguei o forno a 180º e coloquei lá um prato de barro para aquecer. Uma vez a carne bem alourada, foi para o forno por 15 minutos ( porque nós gostamos da carne mal passada) e depois descansou mais 10 - esta parte a minha mãe não fazia e por isso ao fatiar a bela alcatra, ficava no prato um mar de sangue que depois se juntava ao molho.

Molho?

Sim eu fiz um molho e a minha mãe também fazia. Fiz assim:

Depois de pôr a carne no forno, deitei na frigideira uma chávena (de café) cheia de leite e com a colherde pau limpei a frigideira de tudo o que pudesse dar sabor. Entretanto esmaguei os alhos e juntei-os ao leite, bem como 1 colher de sobremesa com mostarda de dijon, uma colher de sopa com molho de soja (que dá cor e sal) e 2 raminhos de tomilho.  Deixei fervilhar um pouco e passei pelo passador antes de juntar ao rosbife.

Foi um sucesso e por uma vez, o mais importante não foi tu teres elogiado e repetido. Isso é sempre muito importante, mas deste vez foi ter recuperado os sabores da memória, foi o que me deixou mais empolgado.

Eu fiz o rosbife que a minha Avó ensinou à minha Mãe antes de eu ter nascido.  

...

Porque, como ficou bem expresso, a memória é fundamental, repeti o prato dias depois para a minha filha e ela adorou. A foto é dessa sessão, pois na primeira não havia couves.

A fugir sempre a dizer, couves não hei-de eu comer

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