27/12/2016

2016 a acabar...

2016 a acabar e eu a adiar as escritas, mas não as comidas, pois tenho cozinhado, muito como é próprio desta época.

Para me despedir do ano, queria apenas recordar o Come-se, blog da Neide Rigo, onde se aprende tanta coisa, e algumas que nos abrem os olhos.

Foi por causa de um seu post antigo, intitulado talos e restos...  que eu comecei a questionar primeiro e a aproveitar depois, todos essas sobras de legumes que deitava fora, por ver outros fazer o mesmo.

Desde aí aprendi que cascas de fava, talos de espinafre, nabiças e grelos, cascas em geral e a rama e folhas de muitos legumes, pode e deve ser usada na nossa alimentação, por serem bons, por terem valor alimentar e porque não está certo deitar comida fora.

Vem isto a propósito duns belos rábanos que comprei e vinham com a sua rama. Pois bem, separei a dita, cortei-a e acrescentei-a a um simples caril de batata, que ficou muito melhor de sabor e aspecto .

No passado fim de semana, apresentei à família, um esparregado de urtigas apanhadas entre oliveiras e laranjeiras, e que sempre cresceram por ali, sem serem utilizadas, Fiz esse esparregado, como aprendi com a Maria José (Tasca do Montinho - Alcórrego), que o faz usando os espinafres mais tradicionais.

Apanhei um bom molho de urtigas (usando luvas, claro) que lavei, escaldei e separei as folhas do resto,  pois neste caso, só usei folhas.
Escorri a água e piquei as urtigas.
Levei ao lume uma panela com azeite, a que juntei dois dentes de alho picados e uma folha de louro. Assim que os alhos começaram a estalar, deitei na panela pão muito bem migado (1 chavena cheia de pão) e de seguida as urtigas (mais ou menos o dobro do pão). Misturei bem e fui juntando uns golinhos de água quente para ajudar a amalgamar o pão e a verdura selvagem. Para acabar, ainda entrou uma mão cheia de coentros picados, sal, pimenta e um pouco mais de azeite.

As urtigas perdem a sua irritante capacidade de picar quem lhes toque, assim que são escvaldadas por um minuto. São grátis, aparecem por todo o lado durante grande parte do ano e fazem um belo esparregado, mesmo em companhia séria como foi o caso - um osso buco com risoto de açafrão

28/11/2016

Continuação da caldeirada



Para trás ficou a idade dos porquês, a idade das borbulhas, a idade do sabe tudo, a idade do “não te rales”, a idade de ser sério e agora, acho que estou na idade de me emocionar.  

Por quase tudo.

Até por uma coisa simples, deliciosa e tão tradicional, como a bela caldeirada, com os seus vegetais básicos e peixes baratos. Com espinhas e peles. Com cuidado na seleção da cada ingrediente e sem modificar o que é perfeito.

No Peru têm uma coisa parecida, o sudado,  ao qual, como nalgumas das nossas caldeiradas(mas não na minha),  juntam sempre líquido – vinho, cerveja ou chicha de jora , no Brasil a moqueca não anda longe, basta juntar o óleo de palma e lá vai a caldeirada a caminho da América do Sul, e se no final entrarem o sumo de lima e os coentros já se começa a escutar o sotaque e a pedir uma caipirinha. 
Mas se for usado leite de coco e malaguetas sem medo, já vamos para outras paragens Africanas ou Indianas. No entanto a base é sempre a mesma, essa coisa milagrosa que é ter rodelas de cebola, tomate, um pouco de azeite e peixe, a suar até estarem cozidos e produzirem esse caldo fantástico, que aguenta  batatas, arroz, massa ou pão. 

Ontem foi arroz. 
Feita a caldeirada, mas sem as batatas, tirei o peixe, para o limpar de espinhas, que voltaram para o tacho, para melhorar o caldo. 
Depois de tudo bem coado, ficou um líquido cheio de sabores, que pareciam esvoaçar, entre o nariz e a boca, prometendo e dando, mais do que a lista dos ingredientes anuncia. 
Nesse líquido cozi o arroz carolino, com caldo suficiente para ficar malandrinho. No final juntei o peixe, coentros picados e o sumo de meia lima. 
Foi a panela para a mesa e depois de servir, olhei-te, esperando a aprovação...


Gostava de conseguir explicar melhor esta simplicidade,  que sinto como fundamental, mas o mais que consigo é emocionar-me e cozinhar este e outros pratos cheios de passado, presente e futuro.

22/11/2016

Tomate, cebola e peixes - uma caldeirada


Eu gosto de variedade e novidade na minha alimentação, mas neste campo, sei sempre bem quem sou e donde venho. 
Por muitas especiarias, molhos, carnes, peixes, ervas, temperos  e outros, que vá descobrindo, regresso sempre à comida tradicional da mesa familiar. Essas são as receitas que mais me dizem e que são naturais para mim. 

O tomate, a cebola, o alho e o azeite, são a base de tantos pratos que estimo e onde a simplicidade, resulta num modelo culinário Português, inequívoco e que de alguma forma nos une para além dos limites do território.


Escrevi isto há mais de um mês e desde aí tenho andado,  a remoer por dentro, sobre o que escrever a seguir. O motivo da pausa, foi a enorme vontade de ser tão simples como o prato a que me refiro, e ao mesmo tempo tentar encontrar as razões de ser esse preparado, um dos melhores que me podem servir.

Refiro-me à caldeirada, esse prato onde se cozinham ao mesmo tempos as batatas e o peixe. Onde há espinhas, peles, pevides e onde qualquer efeito estético é impossível, pois se não é bonito pela confusão, sê-lo-á pelas cores, pelos aromas, pelo sabor, pelo fumo que revela tudo isso integralmente, apenas a quem já o conhece, a quem se lembra, saliva e emociona.

A receita é talvez das mais simples que conheço. Cortam-se as batatas em rodelas, tal como as cebolas. Cortam-se os tomates maduros de igual forma, os pimentos às tiras, esmagam-se alhos, quebram-se malaguetas e folhas de louro, tempera-se o peixe com sal grosso e apronta-se o azeite.

Posto o tacho ao lume, cobre-se o fundo com azeite e começando pelas cebolas, vai-se arrumando em camadas até acabar com tudo. No topo, mais um pouco de azeite e umas ervas frescas (eu gosto de  hortelã e coentros). Tapa-se e deixa-se cozinhar durante (mais ou menos) 15 minutos.

Sem medo.
Sem água ou vinho.
Mandam abanar o tacho e eu faço-o, duas ou três vezes e mais nada, até o destapar para confirmar o ponto das batatas.


Depois, na hora de comer, não há regras para além da gulodice.
O caldo que se formou serve para tudo. Podem-se esmagar as batatas, molhar o pão, ou comer no fim como uma sopinha, cheia dos melhores sabores.  Até a escrever eu salivo.

As minhas caldeiradas deste verão/outono têm sido muitas e a parte mais importante é feita pela Bela, que me escolhe o peixe, na sua banca do Mercado de Alvalade.
Safio, tamboril, cação e raia são os meus preferidos. Nesta versão, dispenso ameijoas, camarões ou lulas, mas não dispenso uns fígados de tamboril ou de safio.
 
Foi comida de pobres, serviu para alimentar quem andava à pesca, usando as partes menos vendáveis dos peixes. Noutros locais o mesmo processo permitia consumir peixes sem valor comercial, por serem pequenos ou muito feios.  Mas hoje é manjar de festivais e prato principal em muitos restaurantes, onde gulosos sem medo das espinhas, se deliciam com tal singela preparação.

Aqui entram poucas coisas, a arte é quase nula, mas deve ser tudo fresco, muito fresco e bem escolhido. E depois é preciso ter à mesa verdadeiros apreciadores. Portugueses com certeza, pois como disse o Chef Aimé Barroyer "...é impossível um espanhol entender uma caldeirada ou um sarrabulho."

19/09/2016

Um primo resolve casar



(para a Marília e o Rui) 

Um primo resolve casar. Os noivos, ajuizados, optaram por uma coisa ligeira, sem atropelos ou grande etiqueta, para além do que recomenda o bom senso.

Apareçam arranjadinhos e venham almoçar, lá na quinta da família. Para alguns, o recado tinha um pedido: podias fazer uma entrada ou um doce…

E eu que viria do Algarve, com paragem breve em Lisboa. apenas dormir e trocar de roupa, pensei no que poderia fazer, que se pudesse preparar com antecedência e acabar na véspera do evento, sem grande ginástica ou nervosismo.
Saiu-me uma salada de batata, com pernil e língua fumados, pepinos de conserva e vinagreta, e não saiu mal. A tigela com a salada, acabou tão perto do gaspacho,  que houve quem pensasse ser alguma modernice para o dito.
Mas adiante, que isso não é o assunto, apenas introdução. 

Como sabe quem come  o que faço ou lê o que escrevo, gosto de aproveitar, sejam cascas de camarão, pão duro, queijo ressequido, raízes de coentros ou qualquer caldo de cozer carnes ou legumes. Olho para eles e penso: isto ainda dá qualquer coisa!


Foi o que pensei quando, terminada a longa cozedura,  escorri os pernis e as línguas fumadas, esses tais que acabaram em salada, no casamento, ao lado do gaspacho.  Pensei apenas, pois os apertos horários não permitiam delongas, e assim congelei o caldo, que hoje finalmente saiu da sua hibernação, e voltou à vida.

Vou fazer um arroz. Com cenoura, couve e feijão verde.

Seria vegetariano se não fosse o caldo. Seria de cozido se tivesse as carnes. Seria arroz de forno se eu não preferisse um carolino caldoso. Seria acompanhamento se precisasse de companhia. Seria risoto se não fosse o que é, um malandrinho e saboroso arroz do caldo dos fumados  que, noutros casos, poderia ter ido pelo cano abaixo.  

Ai que me babo antes do tempo, eu que ainda nem escaldei a couve!

Então faço assim:
Escaldo as folhas de lombardo já cortadas, passo por água fria e escorro
Lavo, tiro o fio e corto o feijão verde. Raspo a cenoura e corto em rodelas   
Pico cebola e alho para o refogado inicial, que será pouco puxado, pois o caldo tem sabor que chegue, porque além das carnes, levou louro, cebola, alho e malagueta…
Depois de amolecer a cebola, junto o feijão e a cenoura, junto o arroz, mexo, espero uns segundos até o arroz começar a pedir que o molhem. Só então junto o caldo medido (2,5 vezes o volume do arroz) e quente, junto a couve, mexo de novo e tapo (deve ficar mal tapado para sair vapor). Coze durante 12 minutos e descansa 3 ou 4… 
Nesta altura (ou seja, agora que escrevo) penso: umas gotas de vinagre?  Ainda não sei a resposta. O vinagre acorda o palato, mas rouba sossego e conforto.  

Escrever é quase tão difícil como cozinhar, mas aqui, se quiser, ainda posso apagar o vinagre!

Contado já está, agora só falta fazer! 

18/09/2016

Grão com mão de vaca

Nunca tinha feito, e é daquelas coisas que de quando em vez me apetece, mas, por ser um prato barato, do tipo farta-brutos, quando o encontro, raramente é bom. Este foi feito com muita calma e muito empenho. Talvez por isso,  o resultado agradou-me, apesar do grão poder ter ficado um pouco mais cozido.

Fiz tudo como manda a receita:

  • demolhei e cozi o grão 
  • escaldei, limpei, cozi e desossei a mão de vaca
  • fiz um bom refogado com muita cebola picada
  • deitei-lhe alho, cominhos e cravinho
  • deitei concentrado de tomate
  • uma malagueta
  • juntei as rodelas de chouriço
  • juntei a cenoura
  • juntei a mão de vaca com um pouco do seu caldo
  • juntei o grão cozido também com um pouco do caldo
  • deixei tudo apurar em conjunto 
  • acabei com coentros picados 
  • e um arrozinho para acompanhar
Palavras para quê? Ou se gosta ou não se gosta, e quem gosta mesmo, deve fazer como eu e pôr mãos à obra, pois qualquer dia nem nas tascas o preparam.

Amanhã levo o resto a passear, para ser comido e valorado por mais alguém. para além deste cozinheiro-escriba. 

07/09/2016

Açorda de conquilhas



Para fazer esta receita, são necessários poucos ingredientes, mas um deles exige um pouco do cozinheiro acidental. As conquilhas, que devem ser apanhadas na praia.  

Procure-se para isso, uma praia de areia fina, e longas marés. Sem rochas ou ondas alterosas. Uma praia onde seja possível a vida para as conquilhas, evitando locais como o Guincho ou a praia fluvial de Constância, por aí não haver animais destes. A zona da Ria Formosa é especialmente indicada, mas sei de quem, com muita paciência, tente e consiga apanhá-las na Costa de Caparica. 

Nem pensar em ir comprar conquilhas ao mercado ou substituí-las por qualquer outra coisa. 

Na praia deve-se optar pela maré vazia, e pelo método mais simples possível. Enterrando ligeiramente um pé na areia(numa zona onde a água chegue), rodar o mesmo pé, levantando um pouco da referida areia (aí é onde as pobres vivem e se julgam a salvo), deixando à vista os pequenos bivalves. Destes, recolher apenas os que apresentarem as duas metades da casca unidas.  Deve-se ter um balde, um saco ou uma garrafa vazia para transportar as conquilhas até casa, com alguma água que permita prolongar-lhes a vida até ao momento fatal (para elas) de serem salteadas. 

Durante a recolha evite-se o contacto com desconhecidos, que pareçam levar a cabo a mesma tarefa, pois o risco da competição, pode resultar na apanha excessiva, com posterior impacto na receita.

Como já aconselhei, não apanhe demasiadas – o excesso leva a mente pelos caminhos da gulodice desenfreada, em que se consomem as conquilhas como se fossem tremoços, umas atrás das outras, molhando no fim o pão no belo molho, quando já nada mais há para comer. Não queremos isso!
Não pare de apanhar cedo demais, também. Se ao olhar o resultado, vir 5 ou 6 conquilhas, o mais certo é desanimar e abandonar o fruto do seu labor, para se dirigir a um qualquer antro onde lhe sirvam bifes, lagostas ou sopa de feijão com couves.

Tendo recolhido a quantidade justa de conquilhas, na praia certa, sem cometer pecado maior que retirar os pobres animais do seu habitat, para acabar com eles na frigideira, dirija-se a casa pensando no que se pode fazer para os cozinhar, ou pensando num amor fugidio, ou mesmo nos versos do Aleixo ou de José Duro, se souber alguns.

Na hora da verdade, não queremos panacotas, tártaros ou em geral pratos com nomes estrangeiros.  
Não espere milagre maior que a simplicidade do sabor (se o souber preservar) e uma magra recompensa para o estômago. 
Pode ser uma canja, um arroz, pode até deliciar-se com esparguete de conquilhas, mas recomendo a mais pobre das receitas. A açorda.
Para isto deve ter em atenção os poucos mas importantes detalhes que se descrevem.

Açorda de conquilhas para um

  • ·         O pão deve ser “carcaça da véspera” – 2 unidades
  • ·         Os alhos se possível dos roxos -   2 unidades do tipo dente
  • ·         Coentros verdes, frescos e espigados, melhor se acabados de apanhar no quintal – muitos
  • ·         Um bom ovo de galinha,  fresco e cru
  • ·         As conquilhas possíveis
  • ·         Sal, pimenta e limão  para temperar


Migue-se o pão e junte-se uma pouca de água, apenas para o humedecer
Escolha uma frigideira, nem grande nem pequena – se não sabe o que é uma frigideira, pode pesquisar no Google e depois voltar aqui.
Na frigideira deite-se azeite a cobrir o fundo. Leve-se então a frigideira ao lume e juntem-se os dentes de alho descascados e ligeiramente esborrachados (pode-se pedir a um vizinho ou a um policia que vá a passar que faça isto, desde que lave bem as mãos antes e não se queixe do cheiro depois).

Espere que o alho comece a fritar (não dá tempo para beber café, nem para tomar banho) e então junte as conquilhas e observe-as enquanto abrem. Não pense no sofrimento delas, faça de conta que é outra pessoa quem está a torturar as pobres, com as chamas do inferno (com alho ainda por cima). Não se deve sentir mal consigo pois isso afecta o resultado final.

Uma vez abertas as conquilhas (isto é, uma vez concluída a mortandade), retire-as para uma tigela e deite-lhes um pouco de sumo de limão, assim como os coentros picados.
Num tachinho (não sei se o Google ajuda nisto dos diminutivos, mas eu gosto) é preciso deitar mais azeite – de novo para cobrir o fundo – pois o pão, entediado com a espera, vai-se ao azeite como o gato às filhozes(coisa nunca vista, imagino eu) e todo o azeite desaparecerá em menos de um ai. Juntam-se então, os dentes de alho, que estavam com as conquilhas e mexe-se tudo (pão, azeite e alho). Vão-se deitando golinhos de água até o pão dar sinais de estar farto.  Nessa altura entram as conquilhas.
Não as retire das cascas, pois só assim, cada uma delas receberá um pouco da sua atenção, acabando por parecer mais do que realmente são. Misture as conquilhas e todo o molho que elas tiverem, na açorda. Junte o ovo, apague o lume e volte a mexer antes de (se) servir.  Pode então juntar um pouco mais de azeite, por causa das coisas. 

Coma a papa mole e saborosa  lentamente e  em paz. Pense em todos aqueles que não sabem o que é bom e evite trincar os alhos. Dedique-se a lamber cascas e continue a comer a açorda até nada sobrar. 
Para comer, use uma colher de sopa. 
Se tudo isto tiver sido um acto solitário, até pode lamber a tigela no final, mas não é obrigatório.
Para acompanhar a açorda, pode servir umas azeitonas britadas, que ligam bem.

No final aprecie o prato das cascas e sorria regalado.